As Acervas no front da revolução

Como as associações de homebrewers de quase 20 Estados mudaram a cultura cervejeira

João Ricardo Zugliani (em pé, à esq), presidente da Acerva Paulista, à frente de 250 sócios e cinco associações regionais,  acredita que este é o momento de fortalecer a Acerva Brasil (Foto: Divulgação)

Fábio Schaffner

Beer Art 8 - jul 2014

Reproduzida em torno da fervura de um mosto, na formulação de uma receita, na escolha de um lúpulo, uma Acerva segue o mesmo espírito de irmandade que une compadres de copo na mesa de bar. Essa troca de experiências com o objetivo de aprimorar e difundir a fabricação de cerveja em casa move uma das mais exitosas iniciativas dos homebrewers brasileiros. Foi a partir da criação das Acervas, as associações de cervejeiros artesanais, que muita gente aprendeu a fazer a própria bebida e hoje está no mercado, como dono de uma pequena fábrica ou produtor de cervejas em parceria com uma das centenas de microcervejarias em atividade no país.

Esse movimento teve origem em 2006, com a criação da Acerva Carioca. Desde então, surgiram quase duas dezenas de outras entidades semelhantes de Norte a Sul, com uma agenda de eventos que cobre o ano inteiro. Nesta reportagem, capa da edição 8 da Beer Art, e aqui reproduzida, veja como se move em cada região essa vanguarda da revolução cervejeira.


No Sudeste

Uma das mais atuantes do país, a Acerva Carioca foi fundada em outubro de 2006, por 15 cervejeiros que se conheceram pela internet. À época, a criação de uma entidade facilitou, com a obtenção de um CNPJ, a compra de insumos por preços mais baratos. Desde então, a Acerva cresceu: hoje são 290 associados, espalhados em seis regionais, cinco já estabelecidas e uma em processo de criação. Além dos eventos mensais, entre eles degustações às cegas e encontros abertos, eles promovem brassagens coletivas e cursos de aperfeiçoamento do cervejeiros .

“Assim como nos Estados Unidos os cervejeiros caseiros brasileiros são os responsáveis pelo desenvolvimento e crescimento da cultura cervejeira e da curiosidade das pessoas em conhecer e experimentar novos estilos e escolas de cerveja. Muitas pessoas começam produzindo nas panelas de casa e acabam se profissionalizando, abrindo lojas, bares e cervejarias”, diz a administradora de empresas Luciane Tavares, a única mulher a presidir uma acerva no Brasil.

No Espírito Santo, o trabalho está sendo retomado depois de uma paralisação da Acerva Capixaba. Há oito meses, descontente com a inércia da entidade, um grupo de cervejeiros caseiros se reuniu a fundou outra associação, a Acerva-ES. Inspirados no modelo de atuação da Acerva Gaúcha e apadrinhados por de outros estados, como Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, o grupo começou praticamente do zero. Atualmente, em torno de 55 sócios estão incorporados à entidade, que realiza eventos principalmente em Vitória e na região metropolitana da Capital.

“Não nos sentíamos representados pela Acerva Capixaba. Por isso reunimos ex-fundadores e uma gente nova, interessada em trabalhar pela cultura cervejeira. Agora já somos reconhecidos como uma organização representativa do Espírito Santo e estamos concluídos os trâmites burocráticos para obtenção do CNPJ”, comemora um dos conselheiros, o empresário Cláudio Françosa Martins, 27 anos.

Hora de fortalecer a Acerva Brasil

Oficialmente, a Acerva Brasil existe, mas não tem presidente, nem diretoria. Sua única atividade são os concursos nacionais, cuja organização sempre é delegada a uma associação estadual. Presidente da Acerva Paulista, à frente de 250 sócios e cinco associações regionais, João Ricardo Zugliani entende que este momento chegou. Descendente dos fundadores da primeira cervejaria de Mineiros do Tietê (SP), no século 19, o químico de 38 anos não teve contato com os antepassados e aprendeu a manejar panelas em um curso da associação. Para ele, é preciso aproveitar estandes que as Acervas terão em eventos nacionais para acelerar as discussões.

“Nosso objetivo é usar esses eventos para nos articularmos. Queremos agregar as Acervas e facilitar o trabalho de todo mundo. Hoje a Acerva Brasil só tem o site. Falta um gatilho”, observa João Ricardo.

Outro entusiasta da iniciativa é Kelvin Azevedo de Figueiredo, analista de sistemas que foi chamado para ajudar no comando da Acerva Mineira depois que o atual vice-presidente pediu licença. Kelvin, contudo, advoga uma postura diferente para as associações. Para ele, é preciso ampliar o foco, hoje muito restrito aos cervejeiros caseiros. “Muitas Acervas estão focadas apenas no cara da panelinha, mas temos outra visão. Nosso objetivo é envolver toda a cadeia”, defende.

Acerva Mineira coleciona conquistas importantes como benefícios fiscais (Foto: Divulgação)

Por que Nova Lima/MG é a "Bélgica brasileira"

No Estado, 80% dos integrantes do Instituto Mineiro da Cerveja são sócios da Acerva. As duas instituições ajudaram a conquistar importantes avanços para os cervejeiros mineiros. Em Nova Lima, principal polo da indústria cervejeira local, eles atuaram junto à prefeitura para obter benefícios fiscais às microcervejarias. Hoje a cidade é chamada de Bélgica brasileira, abrigando 22 fábricas. Os cervejeiros são considerados artesãos, pagando portanto uma carga reduzida de impostos.

Foi em Nova Lima, por exemplo, que sete cervejeiros caseiros e integrantes da Acerva Mineira seguiram a inspiração associativa da entidade e abriram a Inconfidentes Cervejarias Conjuradas. Trata-se de uma cooperativa, na qual se reuniram as marcas Grimor, Jambreiro e Vinil. Os até então homebrewers compraram equipamento de brassagem de 2 mil litros, seis tanques e hoje produzem até 24 mil litros por mês.

No Sul

Com o mesmo fundador da Acerva catarinense, Murilo Foltran, a Acerva Paraná mantém a trajetória de facilitar a vida dos cervejeiros (Foto: Divulgação)

Murilo Foltran (Foto: Arquivo Pessoal)

Na Região Sul, um dos pioneiros desta cena é o engenheiro da computação Murilo Foltran, fundador das Acervas de Santa Catarina e do Paraná. Curitibano, ele se mudou para Florianópolis no início dos anos 2000. Com o amigo Marco Zimmermann, abriu uma lista de discussão na internet sobre cerveja caseira, enquanto se aventurava nas primeiras brassagens na Ilha da Magia. Das conversas online e de workshops surgiu a Acerva Catarinense, hoje uma das mais atuantes do país.

Foltran voltou a Curitiba em 2010, fundou a Acerva Paranaense e em seguida a cervejaria DUM, criadora da lendária Petroleum, cujas tiragens limitadas causaram frisson no universo cervejeiro, rendem rasgados elogios da crítica especializada e vão virar filme. A partir da própria trajetória, para Foltran o papel fundamental das associações é facilitar a vida dos cervejeiros caseiros.

“No início, a gente se unia na Acerva Catarinense para comprar meia tonelada de malte, que eu guardava lá em casa. O importante é divulgar a cultura e ajudar cada vez mais gente a fazer a própria cerveja”, diz Foltran, atual vice-presidente da Acerva Parananse.

Acerva Catarinense hoje conta com mais de 260 sócios distribuídos em oito associações regionais (Foto: Divulgação)

Sediada em Curitiba, a entidade tem hoje cerca de 180 sócios ativos e outros 300 “bissextos”. O legado de Foltran em Santa Catarina foi seguido pelo servidor público Cássio Ricardo Marques, 38 anos. Na Acerva Catarinense, Cássio capitaneia 260 sócios, distribuídos por oito associações regionais. Juntos, eles organizam brassagens coletivas, encontros pelo interior do Estado, concursos, festivais, oficinas e sessões de análise e degustação.

Acerva Gaúcha aposta na troca de experiências para qualificar a produção da cerveja artesanal (Foto: Divulgação)

Guenther Sehn (Foto: Arquivo Pessoal)

Em todas as Acervas, a atividade mais frequente são os encontros, nos quais cada associado leva a sua cerveja para apreciação dos confrades. De acordo com o presidente da Acerva Gaúcha, Guenther Sehn, esse é o primeiro passo para qualificar a cerveja caseira. Para Guenther, quando o homebrewer serve a bebida que faz em casa apenas para os amigos, é difícil alguém identificar defeitos ou fazer críticas.

"Esse feedback é leigo, então o cara pode se enganar com a própria cerveja. Nas reuniões na Acerva, a gente apresenta, explica, degusta. Tudo isso aprimora o processo. Há uma grande diferença na cerveja de quem faz em casa sozinho e de quem é ligado a uma Acerva. Os da Acerva evoluem muito mais rapidamente", destaca.

Arquiteto de software, 32 anos, Guenther está na segunda gestão à frente da associação, que tem sede própria, 170 sócios e cinco entidades regionais filiadas. No ano passado, ele criou o maior fórum de discussões sobre cerveja no país, o homebrewtalk.com.br, com 1,7 mil integrantes.

Norte e Nordeste

Se no cenário do Sul e do Sudeste a cultura cervejeira tem raízes sedimentadas e um mercado em ebulição, no Norte e no Nordeste o trabalho ainda está no início. No Pará, a Acerva recém comemorou o primeiro aniversário e tem pouco menos que 50 sócios.

“Estamos muito longe dos grandes centros, tudo é mais difícil”, admite o presidente Iuri Fernandes, 35 anos, analista de sistemas. A associação começou de uma conversa entre amigos numa boutique de cerveja, mas não havia sequer quem ministrasse curso de fabricação caseira em Belém.

Associados da Acerva Pernambuco unem-se para amenizar as dificuldades na aquisição de matéria prima (Foto: Divulgação)

Com ajuda dos colegas da Acerva Carioca, o grupo inicial foi se organizando e crescendo. A ambição do presidente agora é atrair um evento nacional para a Belém, de preferência um concurso nacional das Acervas.

Também fundada no ano passado, a Acerva Pernambuco ainda não tem presidente. Quem toca a associação é um colegiado de 10 diretores, um deles o engenheiro eletrônico Raphael Vasconcelos, 28 anos, autor do blog retrogosto.com . Ele conta que o principal obstáculo na região é a dificuldade para aquisição de matéria-prima e instrumental. No Recife, faltam lojas do ramo. Por conta disso, os associados costumam se cotizar para dividir os gastos com encomendas do Rio e de São Paulo.

“O custo do frete é o nosso maior problema. Vários sócios querem abrir algum negócio vinculado às cervejas artesanais. A loja de insumos é prioridade”, enfatiza Raphael.

Acerva Baiana prepara para novembro o concurso nacional das entidades com presenças internacionais já confirmadas (Foto:Divulgação)

Na Bahia, a capital, Salvador, tem apenas um pub especializado em cervejas especiais, e carece de loja de insumos. Nada que amedronte a Acerva Baiana, que organiza para novembro o concurso nacional das entidades. São esperados mais de 600 homebrewers, em tendas montadas à beira-mar, na praia de Itapuã. Vice-presidente da entidade, o médico Adriano Bovo Mendonça já garantiu a presença de dois figurões internacionais: Gordon Strong , presidente da Programa de Certificação de Juízes de Cerveja dos Estados Unidos (em inglês, Beer Judge Certification Program/BJCP) e Gary Glass, diretor-executivo da American Homebrew Association (AHA).

Capa da Beer Art 8, que em julho de 2014 fez um retrato amplo das Acervas