Vinícius H. Masutti

Um "idealista" que trabalha com cervejas artesanais em Cuiabá (MT), Vinícius H. Masutti escreve aqui sobre um diagnóstico interessante: Amnésia Olfativa

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Beer Art 11 - out/14

“Se você for a um bar e começar a cheirar a cerveja e especialmente, se começar a falar de notas de maracujá, você pode ser gentilmente convidado a se retirar. Às vezes parece difícil falar sobre o buquê da cerveja, mas os cervejeiros se esforçam para que suas cervejas tenham um bom buquê. Quando eu degusto uma cerveja eu estou atrás do buquê, do sabor (...) Degustar uma cerveja é um exercício tridimensional, você usa todos os sentidos.” Michael Jackson, o guru da revolução cervejeira em um dos episódios de seu programa “The Beer Hunter” no canal Discovery em 1989

Uma das maiores frustrações de um sommelier, mestre-cervejeiro ou mesmo de um entusiasta da cultura cervejeira, é compartilhar uma boa cerveja, cuidadosamente escolhida e, ao servi-la e indagar sobre os fantásticos aromas da mesma, receber uma resposta do tipo “Tem cheiro de cerveja” ou um simples “É boa” ou, ainda pior, não receber nenhuma resposta, pois o sujeito engoliu a bebida sem ao menos cheirá-la. Vocês bem sabem que isso é muito comum e frequente, e é uma das grandes barreiras quando se trata de uma degustação, que é afinal o que de fato abre as portas da cultura cervejeira para as pessoas. A experiência sensorial. Pois bem, a isso eu chamo de amnésia olfativa e é um mal que atinge a esmagadora maioria das pessoas e só é diagnosticada quando oferecemos a elas uma boa cerveja (ou um bom vinho), ou seja, quando estimulamos a memória olfativa da pessoa e não obtemos resposta, ou no mínimo uma resposta satisfatória. Esta amnésia (não confundir com a cerveja da Mistura Clássica nem com a amnésia alcoólica, já que bebemos melhor e não em demasia) tem duas causas a meu ver, e são culturais e não físicas, portanto não se trata de anosmia, que segundo minhas pesquisas é a perda total do olfato.

Desde sempre os consumidores de cerveja aqui pelo Brasil foram ensinados de que a cerveja não tem cheiro, deve ser inodora, e caso haja, é um cheiro característico que de alguma forma é classificado como “cheiro de cerveja”. Há alguns dias ouvi um caso clássico que demonstra isso. Quando minha mulher foi flagrada cheirando o copo de cerveja foi indagada assim “O que foi? O copo tá com cheiro?”. Um espanto que demonstra a espantosa má educação cervejeira a que fomos submetidos. Um dos grandes benefícios que um mergulho na cultura cervejeira pode trazer é a intensificação dos sentidos, a boa cerveja é um estímulo para o paladar e olfato principalmente, e de certa forma a busca por novas cervejas os potencializa. Mas, para poder extrair tudo que uma boa cerveja pode dar, é preciso ter o nariz, a boca e a mente bem abertos, pois a degustação é parte sentido, parte imaginação e essa bebe da fonte da memória... da memória olfativa. Outra causa da amnésia do olfato, é a cultura brasileira do “Come enquanto tá quente, bebe enquanto tá gelado”. Não somos estimulados a saborear a comida ou a bebida na maior parte das vezes e essa atitude faz com que não registremos bem os aromas e sabores das coisas.

Se boa parte do que sentimos como sabor vem pelos aromas, alguém que não tem boas memórias olfativas sempre terá restrições gustativas e provavelmente não apreciará aquela cerveja carinhosamente selecionada, da forma como você gostaria. Pra resolver essa situação, é preciso um trabalho cuidadoso e paciente, estimulando a pessoa a procurar na memória aromas parecidos com aqueles que podem estar na cerveja.

Um exercício que gosto de fazer com as pessoas que estão engatinhando nas degustações é estimulá-las a cheirar com vontade as frutas na feira, a comida no prato, os temperos e especiarias no mercado ou em casa. Isso costuma funcionar, e como a amnésia é temporária é hora desse tempo acabar. Beber uma cerveja é mais do que engoli-la, e uma boa cerveja é aquela que desafia nossos sentidos e estimula nossa memória. Portanto precisamos fazer mais do que boas cervejas, precisamos promover uma educação cervejeira. Como diria uma amiga, um cheiro ‘pro cêis’.