Bodebrown, ebulição criativa
/Conheça a história da Bodebrown - Cervejaria do Ano em 2013 e 2014 - e as ideias de seu inquieto criador
Luís Celso Jr.
Beer Art 6 - mai 2014
Curitiba (PR) - Julho de 2009. Recebo um convite para participar como jornalista de um curso de cerveja artesanal feita na panela. O material falava da primeira cervejaria escola do país estar sendo fundada em Curitiba. O nome? Um pouco esquisito. Era uma tal de Bodebrown. Foi esse meu primeiro contato com a eleita Cervejaria do Ano bicampeã no Concurso Brasileiro de Cervejas, nas edições do Festival Brasileiro da Cerveja de 2013 e 2014 em Blumenau (SC). Era uma pequena fábrica – brassagem de 150 litros e cerca de três ou quatro tanques de 200 litros – com sala de aula ao lado. Um espaço relativamente desconhecido, principalmente por quem era de fora do grupo cervejeiro de Curitiba.
Hoje a Bodebrown continua micro – apesar da brassagem maior, de 1,5 mil litros, e 26 mil litros em tanques –, mas se tornou uma das referências nacionais. Para isso acontecer foram pouco mais de cinco anos de trabalho, ousadia, uma certa dose de loucura e muita paixão, conta o sócio proprietário, Samuel Cavalcanti.
O reconhecimento veio em visibilidade na imprensa nacional, no meio cervejeiro e muitas premiações. Além das 11 medalhas no concurso nacional de 2013 e das 10 em 2014, a Bodebrown foi a primeira cervejaria brasileira premiada no Mondial de La Bière em Montreal, no Canadá, e totaliza nada menos do que oito medalhas em diversas edições do festival. Além disso, acumula prêmios também no Australian International Beer Awards e em outros festivais.
Grande parte dessa trajetória foi traçada com base na personalidade do próprio Samuel, considerado por muitos um cientista maluco da cerveja – alcunha que tem certa motivação na aparência desse pernambucano radicado em Curitiba desde os 18 anos, com cabelos arrepiados e meio grisalhos. Formado em Química Industrial em 2000, Samuel conta que a paixão surgiu nas aulas de fermentação ainda na faculdade, onde estudou também o pão e os queijos. Seus olhos brilharam quando ouviu as histórias de monges que produziam cerveja e quis fazer aquilo também.
O primeiro curso na área foi em 2002 e muitos outros se seguiram, como VLB de Berlim e Siebel de Chicago. Entre um e outro, conta o empreendedor, aprendeu muito com livros, diversas viagens pelo mundo e com pessoas do meio cervejeiro que conheceu, na capital paranaense ou fora dela.
E, talvez, seja essa capacidade de juntar pessoas uma das grandes características de Samuel e, por extensão, da Bodebrown. Já no início da cervejaria, vários cervejeiros de destaque em Curitiba estavam de alguma forma em contato com a cervejaria, como amigos ou profissionais. Além disso, a proposta de uma escola de cervejeiros caseiros, loja de insumos e microcervejaria ajudou a criar uma comunidade forte em volta da Bodebrown. “É um tripé perfeito”, diz Cavalcanti. “Cria fãs, promove a cultura cervejeira e cria o renascimento. O resultado se vê na cidade hoje, com muitos homebrewers e microcervejarias. Claro, existiram outros players e nem tudo saiu daqui. Mas não há como negar que a Bodebrown teve um grande papel de destaque na construção dessa cidade cervejeira de destaque nacional hoje”, completa.
Viva La Revolución
Outra característica importante da Bodebrown é ir além do óbvio, procurando estar à frente, na vanguarda, conta Samuel. E isso se reflete nos produtos em inovações. Alguns exemplos são as premiadas Hop Weiss, uma cerveja de trigo lupulada, além da Wee Heavy e Perigosa IPA, as primeiras Strong Scoth Ale e Imperial IPA, respectivamente, registadas no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Ou mesmo a tão comentada recentemente Cacau IPA, cerveja clara e com ótimo equilíbrio entre amargor do lúpulo e o cacau, produzida em colaboração com Greg Koch, cofundador e presidente da Stone Brewing, em visita ao Brasil.
“Se fizéssemos a mesma coisa que o pessoal fazia há cinco anos, há uma grande possibilidade nem estarmos mais presentes no cenário cervejeiro do Brasil”, comenta o proprietário da Bodebrown.
É isso, essa inovação, o que brada Samuel sempre que pode com o tema “Viva La Revolución”, que virou corrente no meio cervejeiro em Curitiba – o termo teria surgido de uma garrafa da microcervejaria chilena Capital anos antes e foi adotado por todo o movimento.
Sobre os negócios, Samuel diz que não tem a pretensão de ser grande. Diz que é preciso ficar de olho no Business Plan e nos números, mas o essencial mesmo é a paixão pelo que se faz. “Só os números não são suficientes para dar viabilidade esse negócio”, completa. Outra curiosidade é o nome da cervejaria. O Bode vem das origens pernambucanas de Samuel, onde a família criava bodes. Brown vem de James Brown, cuja música Samuel escutava no mesmo dia que recebeu o conselho de sua avó para buscar o nome do empreendimento nas raízes de sua linhagem.
Passeio cervejeiro
Nos eventos, a Bodebrown também inovou. Além de diversas festas que já fez, criou Beer Ranch e o primeiro Beer Train brasileiro, terceiro no mundo. Trata-se de um passeio sobre trilhos pela Serra do Mar paranaense, a maior faixa de Mata Atlântica contínua preservada do país.
Tive o prazer de acompanhar os eventos e pisar novamente na cervejaria em fevereiro, anos depois de minha primeira visita. A planta da fábrica hoje está em meio a um processo de reforma. Uma nova “cozinha” foi instalada, além de mais tanques de fermentação – e outros estão por vir. A fachada também mudou e um galpão grande do outro lado da rua virou o depósito. O crescimento tem sido rápido, tanto que falta até espaço. Quatro tanques de fermentação foram pintados e colocados do lado em uma área coberta do lado de fora da cervejaria.
O Beer Ranch ocorre durante uma sexta-feira. É o dia no qual cervejeiros convidados do Beer Train fazem uma brassagem colaborativa na cervejaria. Quem quiser pode se inscrever e acompanhar tudo de perto, desfrutando da hospitalidade dos anfitriões com chopes liberados e almoço. Além de Greg Koch, por exemplo, Doug Odell, fundador da Odell Brewing, e Chris White, fundador do laboratório de leveduras White Labs, já participaram e fizeram ótimas cervejas.
Os convidados da vez foram os norte-americanos Chris Kirk (Great Divide/Moffat Sation) e Tyler Joyce (Great Divide/Mile High), renomados cervejeiros da região do Colorado, nos Estados Unidos, o belga Greg Murer, cervejeiro das marcas La Brasserie Fleurac, na França, e a mexicana Laura Rudth Bock, chef de renome internacional, especializada em cacau e chocolate. Também estiveram presentes representantes das cervejarias Dama Bier, de Piracicaba (SP) e SüdBrau, de Bento Gonçalves (RS). Os gringos fizeram outras produções nessas mesmas fábricas durante a estada no Brasil.
Foi possível acompanhar todo o processo da cerveja, receita bolada pelos norte-americanos de uma Wheat Beer (cerveja de trigo americana) escura e com cacau. Desde o início, muita ajuda nas panelas. O entra-e-sai na sala de brasagem era grande enquanto a confraternização rolava solta na área aberta das instalações. Greg foi o centro das atrações por conta do atraso no voo dos norte-americanos, que só chegaram na metade da tarde. Mas o pessoal pareceu não se importar muito e o clima geral era de confraternização. No almoço, sanduíches de pães de fermentação espontânea e leveduras de cerveja com recheios inusitados, de Barreado a tropeiro.
No galpão, do outro lado da rua, é onde Samuel guarda alguns dos seus tesouros. Além de leveduras líquidas, lúpulos e produtos acabados, a câmara fria esconde algumas experiências da cervejaria. Feitas na panela, obviamente. Nos fundos, barris de madeira maturam cervejas por períodos mais longos. Foi possível experimentar desde Wee Heavy destilada, maturada em barril Bourbon, até 4 Blés em barris de carvalho. Ambas deliciosas e sem data de lançamento ainda.
Festa sobre trilhos
No dia seguinte, logo cedo, os passageiros já estavam reunidos na Rodoferroviária de Curitiba para o embarque no tão aguardado Beer Train. Dois vagões tem a sorte de fazer esse passeio tradicional na cidade acompanhado por belas cervejas artesanais da Bodebrown, Bier Hoff Pumpkin Ale e Dama Bier IPA. E elas se mostrariam essenciais, já que o dia anunciava ser de temperaturas muito altas já na partida.
E o passeio começa orientações e agradecimentos por parte da tripulação do trem e de Samuel. Entre a capital e a Serra do Mar as paisagens vão mudando aos poucos, na medida em que as cervejas começam a ser servidas e os passageiros dão início ao bate-papo. Um kit, entregue no embarque traz a caneca do evento, o cardápio e pequenas porções de queijo para as harmonizações. Pães artesanais também foram servidos ao longo da viagem. E poucos quilômetros depois o passeio passa a ser festa sobre trilhos. Apesar das sequências continuarem a serem servidas regularmente, poucos permanecem sentados e a confraternização vira novamente o objetivo. Tudo isso enquanto se curtem belas paisagens.
A ideia desse passeio inusitado nasceu, segundo Samuel, de uma reunião de família com o irmão e a mãe, guia turística há mais de 10 anos no transporte ferroviário de Curitiba. Além disso, o próprio Samuel é um aficionado por trens, já tendo participado de viagens em diversas partes do mundo. “Essa é uma iniciativa inovadora no Brasil, na América Latina e uma das poucas no mundo do gênero”, diz.
O desembarque ocorre já em Morretes, cidade histórica na região litorânea do Paraná. Mas o passeio ainda não termina. Uma pequena caminhada e todos chegam ao restaurante onde será servido como almoço o Barreado, comida típica da região baseado em carne bovina cozida até desfiar. O prato é pesado e no breve tempo até o embarque em ônibus para Curitiba, muitos aproveitam para descansar à marguem do Rio Nhundiaquara, que corta a cidade. Outros, mais ousados, se refrescam dentro das águas mesmo – o calor não dava trégua! A volta para a capital paranaense é tranquila e a maior parte dos passageiros aproveita para descansar e dormir, dando fim a belos dois dias de muita cerveja boa, cultura e diversão.
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