O cenário da cerveja em Portugal
Entrevista: Tiago Lopes, da Cervejaria Dois Corvos (Lisboa) e host do podcast Quem Bebe por Gosto
Por Sérgio Barra e João Paulo Chiavegatto, do Profano Graal
Tiago Lopes é gestor de Comunicação da Cervejaria Dois Corvos, de Lisboa, e host do podcast Quem Bebe por Gosto, sobre cerveja artesanal portuguesa. Formado em Multimídia, Tiago migrou para o ramo de bares e restaurantes após uma estadia em Londres, onde o que era para ser um bico se transformou em uma nova formação profissional. Mas foi trabalhando nos bares da Brewdog em Barcelona e em Estocolmo onde estreitou o seu relacionamento com a cerveja.
Desde 2016 é colaborador da Cervejaria Dois Corvos, que é hoje uma das principais cervejarias do cenário português de craftbeer. Lá dividia-se entre a produção (como cervejeiro assistente) e a comunicação (abastecendo as redes sociais da cervejaria), até se fixar exclusivamente como gestor de Comunicação da cervejaria, desde 2018. Definindo-se como um “comunicador de cerveja”, é também host do podcast Quem Bebe por Gosto, em atividade desde janeiro de 2019 - a cada 15 dias, recebe como convidado uma personalidade no meio da cerveja artesanal portuguesa, cumprindo o objetivo de “dar voz aos heróis sem capa que põem a boa cerveja nos nossos copos”.
Tiago concordou em responder a algumas perguntas que encaminhamos por e-mail sobre o mercado português de cerveja artesanal, com o objetivo de suprir, ao menos em parte, a lacuna de informações sobre esse mercado existente na mídia brasileira especializada em cerveja.
Vamos começar com uma pergunta de apresentação para o público brasileiro que ainda não o conhece: qual a sua área de formação e como, quando e por que aconteceu a sua entrada no mercado cervejeiro?
Estudei Multimídia e em 2008 estava a trabalhar com fotografia e programação web. Em 2012, emigrei para Londres com o objetivo de trabalhar como programador. Ambientar-me a Londres não foi tão fácil como parecia, e acabei a trabalhar num restaurante de cozinha Japonesa. Uns meses depois - já em Portugal -, tenho a oportunidade de entrar para uma das mais famosas cadeias de hotelaria do mundo e aí ganhei bastante experiência de serviço. Em 2015, a meio de uma viagem de carona até à Índia - que não durou mais do que um mês - consegui arranjar trabalho no recém-aberto bar Brewdog em Barcelona. Até lá nunca tinha trabalhado com cerveja, mas tinha provado muitas coisas - principalmente nos bares Brewdog em Londres. Deram-me a oportunidade de começar a trabalhar lá e nessa altura comecei a ler muito livros. Foi aí também que comecei a fazer cerveja de panela... num Hostel (onde vivia). Passados uns meses, tornei-me o Duty Manager e chegaram-me a pagar "uma viagem de estudo" para Aberdeen. Passado um ano, mudei-me para Estocolmo e trabalhei em dois outros bares Brewdog suecos.
Você é, atualmente, colaborador da cervejaria Dois Corvos. Você pode explicar para o público brasileiro qual o lugar da Dois Corvos hoje no mercado português de craftbeer e qual a(s) atividade(s) que você desempenha na cervejaria?
É difícil falar da Dois Corvos de forma justa sem a elogiar, e é ingrato ter este papel quando sou colaborador. Mas, de fato, quando regressei para Portugal, a Dois Corvos era a minha cervejaria preferida. Já nessa altura (2016), sentia que algumas cervejas que provava poderiam competir com excelentes cervejas que vendia na Suécia. Neste momento, a Dois Corvos é uma das cervejarias com maior experimentação, mais disponível e com melhor qualidade e consistência. Recentemente, foi lançada uma série de cervejas Wild - e há cerca de 140 barricas cheias em maturação. Tem vindo a ser convidada para alguns dos melhores festivais na Europa - como o caso do Budapest Beer Week ou do Mash Beer Fest (Barcelona), e vê-se ao lado de marcas que serviram de inspiração para começar. Já foram produzidas mais de 100 receitas diferentes em menos de 4 anos, e é - sem dúvida - uma referência no panorama nacional. Em relação à minha "carreira" na Dois Corvos: deram-me a oportunidade de aprender muito - e fui contratado como cervejeiro. Desde essa altura, usava os 30 minutos do CIP dos tanques para tirar fotografias das cervejas ou logo após fazer mash-in, ia fazer uma publicação no Facebook... O meu dia dividia-se entre a produção e comunicação, sendo que a última não era o foco nem prioridade. No verão do ano passado, fui desafiado a organizar a festa de terceiro Aniversário - que recebeu cerca de mil pessoas - e para isso, tive que me afastar da produção por um par de meses. Depois disso, apostaram (e arriscaram) em colocar-me unicamente dedicado à comunicação - e hoje sou o gestor de Comunicação da cervejeira.
Portugal é conhecido pela fama internacional dos seus vinhos. O vinho é a bebida alcoólica mais consumida em Portugal? Qual a fatia do mercado português de bebidas alcoólicas ocupado pela cerveja artesanal? Você vê o crescimento do consumo de cerveja artesanal no país como uma mudança de paradigma no consumo de bebidas alcoólicas em Portugal?
Segundo consta, a cerveja é a bebida mais consumida em Portugal. Em seguida, o vinho - com um consumo em decréscimo desde 1990 (Instituto Nacional de Estatística) Em Portugal, a cerveja artesanal expressa-se com menos de 1% de fatia de mercado. É um movimento recente, que tem vindo a crescer, mas com uma expressão ainda diminuta. Quem prova uma boa cerveja dificilmente volta atrás, pelo menos por opção própria. E tem-se notado a curiosidade dos portugueses e a consequente mudança de consumo - procurando produtos bem confeccionados e de qualidade - na comida e na bebida.
A esse respeito, qual o perfil dominante do público consumidor de cervejas artesanais em Portugal? E dos seus produtores?
Curiosamente, o consumidor em Portugal é diferente do habitual. Gosta de provar sabores diferentes, e nem sempre faz cara feia com uma Lime Gose ou uma cerveja maturada com Brett. Isso é curioso - e desafiante para o mercado. Se observarmos a história da Craft beer revolution nos EUA, vemos que passaram décadas desde que as cervejas eram mild até passarem a serem amargas. Décadas de consumo para passar de cervejas com drinkability até serem complexas. Décadas até os paladares se apurarem para cervejas com levedura selvagem - e criar este mercado. Felizmente, temos produtores que já se focam especificamente em categorias de cerveja. A Lupum produz as cervejas mais fortes e complexas que conseguem - e algumas das mais bem pontuadas em Portugal. A Cerveja Luzia trabalha essencialmente com barris - pelo extenso background vinícola que têm.
Aqui no Brasil, a cerveja artesanal ocupa atualmente 3% do mercado nacional de cervejas. Mas isso já é o suficiente para incomodar os 3 grandes conglomerados cervejeiros que dominam os outros 97% do mercado (AB-Inbev, Grupo Petrópolis e Grupo Heineken). A ponto de comprarem pequenas e médias cervejarias independentes para não perder essa fatia do mercado. Existe um movimento semelhante em Portugal por parte das gigantes do mercado português (SCC, Unicer)?
De momento ainda não ocorreram compras pelas gigantes industriais em Portugal. Por outro lado, ocorreu a compra de uma cervejaria por um produtor de vinho com grande capacidade financeira - a Sovina pelo grupo Esporão. Assiste-se à tentativa de criar produtos que ocupem a categoria de cerveja especial, com roupagem craft pelas macrocervejarias. Vê-se a criação de microempresas (geridas pelas gigantes) para importarem e venderem craft internacional ou contract-brewing. Estão, sem dúvida, com os olhos postos no que os verdadeiros produtores artesanais estão a fazer e a tentar capitalizar isso.
Como a proximidade com centros cervejeiros tradicionais (como a Bélgica ou a Alemanha) afeta o mercado português de cervejas artesanais? Quando estive em Portugal fui ao Duque Brewpub e percebi que as torneiras ofereciam somente cervejas portuguesas. A facilidade de importação de rótulos mundialmente conhecidos (Delirium, La Trappe, Schneider, etc.), por exemplo, é um problema para a produção independente nacional?
Não creio que seja um problema. Até há poucos anos, era só isso que chegava a Portugal. Muitos dos beer-geeks mais experientes começaram por aí e agora procuram cervejas mais complexas (e locais). Há espaço para tudo, na minha opinião. O Duque é um exemplo de divulgação do bom que se faz por cá, numa zona especialmente turística. Estão a fazer um excelente e importante trabalho!
Nesse sentido, como você enxerga hoje o mercado português cerveja artesanal no contexto do mercado europeu?
Nos últimos anos, a maior parte das viagens que faço estão relacionadas com cerveja. Voo para ir a festivais cervejeiros pela Europa. E aqui temos vindo a ver marcas como a Letra, Oitava Colina, Dois Corvos, Luzia... que estão ao lado de grandes nomes - e que se batem com tanta ou mais qualidade. É impressionante observar a qualidade (e experimentação) de algumas cervejarias em Portugal, num mercado tão recente.
A respeito do seu podcast, como surgiu a ideia do Quem Bebe por Gosto e quais os objetivos que você pretende atingir com o programa?
Tenho a felicidade de me ladear frequentemente com alguns dos heróis que fazem estas cervejas (que têm impressionado pela Europa fora). São tantas as histórias que se contam (e que se vivem). E tenho a certeza que se não amplificarmos estas histórias, elas acabam por se perder. A indústria está em constante mutação e crescimento. Achei que era importante dar voz a estas pessoas. Cervejeiros, bartenders, distribuidores, consumidores, todos os que contribuem para este movimento - com os valores certos. Desde que comecei - em janeiro -, percebi que o Podcast tem vindo também a ser um apoio para os novos consumidores curiosos - que querem entender a indústria e as pessoas que a compõe. Percebendo isto, começo a pensar de que forma consigo levar estes conteúdos a mais pessoas, bem como levar a mensagem da cerveja artesanal mais longe. Creio que a próxima temporada responderá a esta questão.
Você se define como “comunicador de cerveja”. Na sua percepção qual o papel de um comunicador de cerveja na consolidação do mercado de cervejas artesanais. É extremamente importante. Há mitos que se devem romper, há preconceitos a debater, e há até desinformação criada pelos gigantes para confundir o mercado (como o caso do "inovador" - não inovador - dry-hopping, por exemplo). Enquanto comunicador na Dois Corvos, sempre me esforcei para criar peças de conteúdo educativo - explicando os ingredientes e processos, referindo o uso de ingredientes especiais em colaborações etc. E isto são ferramentas que permitem o consumidor perceber o que é a qualidade e valorizar os bons produtos. Outra questão é o termo "artesanal". É a tradução mais acertada de "craft", mas redutor - transmite a ideia de que é um produto amador, tosco. E a cerveja artesanal não é isso. É um produto feito com carinho, em pequena escala - na busca da melhor qualidade possível. E para traduzir "artesanal" em confiança é preciso comunicar - e bem. E há exemplos de boa comunicação. A Musa, por exemplo chega a um mercado mais extenso que qualquer outra cervejaria portuguesa ao associar-se à música: seja pelos criativos nomes (Red Zeppelin, Born in the IPA ou Mick Lager) como pela produção de concertos gratuitos no seu Tap Room. E este posicionamento é comunicação, é estratégia.
O seu podcast tem, para mim, o efeito de dar uma cara à comunidade da cerveja artesanal portuguesa. Como é a relação entre os cervejeiros e as cervejarias na comunidade da cerveja artesanal portuguesa? Essa comunidade é integrada como parece ser ou, por outro lado, o seu podcast aparece como um esforço no sentido construir essa comunidade, rompendo a dispersão espacial dos produtores e o distanciamento entre os produtores e os consumidores?
A comunidade é muito unida, sim. Como referi, passo bastante tempo com muitos dos participantes desta indústria. Nos festivais, é habitual ver os cervejeiros vestidos com camisas das marcas concorrentes. Em Marvila, por estar ao lado da Musa e da Lince é comum discutirmos receitas abertamente, emprestar sacos de cereais ou lúpulo... Ajudamo-nos uns aos outros, sem pensar nem hesitar.
Você acompanha o cenário craftbeer brasileiro? O que você acha que a comunidade cervejeira portuguesa pode aprender com a brasileira e vice-versa (em termos de organização, divulgação, etc.)?
Infelizmente não acompanho, honestamente. Sei que há muitas coisas boas a serem feitas, e que o mercado tem crescido com uma força brutal. Acho que há espaço para muita troca de informação, sem dúvida. A nível técnico - de prova ou produção - não há barreira alguma para Portugueses lerem livros Brasileiros ou o revés.
No Brasil a procura por cursos de beer sommelier cresceu muito nos últimos anos, aliada à expansão da oferta desses cursos. A ponto do mercado já não absorver boa parte dos sommeliers formados (apesar de muitos desses formados nem terem a intenção de se inserir efetivamente no mercado, mas “apenas” de aumentar o seu conhecimento enquanto consumidores de cerveja artesanal). Como é, em Portugal, o cenário da formação de beer sommeliers e como eles têm se integrado ao mercado?
Infelizmente não há nada em Portugal. Ocasionalmente existem cursos não certificados de produção ou prova - que são importantes - mas são incompletos num ponto de visto mais global. Se alguém tiver interesse em fazer cerveja em casa, pode fazer um workshop de produção caseira, mas não há continuidade. Se alguém quiser estudar para trabalhar nesta indústria, não há nenhum local dedicado a isso. Tivemos há um par de anos um curso intensivo da lecionado pela Doemens, em que a Cilene Saorin formou cerca de 20 beer sommeliers, mas foi o único momento em que houve uma formação especializada e certificada. Há um projeto que está a ser cozinhado que irá incidir precisamente nesta necessidade do mercado, mas não há data prevista de apresentação. Muito obrigado pelas questões e pelo interesse! Espero que a comunidade craft continue a crescer no Brasil e em Portugal, e que momentos de discussão e divulgação continuem a acontecer! Saúde!